Abacaxi e arroz de tomate: os niquentos SA
Vou-me dando conta constantemente dos pequenos nada, dos pequenos tudo, que vão povoando o quotidiano de quem vive com alguém com Síndrome de Asperger, nas suas peculiaridades comportamentais, estranhas para nós. Muitas delas sempre as vi, anotei mentalmente, mas verdadeiramente nunca as interiorizei. Elas eram apenas dados sem ligação entre si que eu amontoava, sem nelas ver qualquer conexão. Porém - desde há dois anos – vou-as juntando num puzzle coerente. E desde há um mês «atiro-as» para aqui, não as calando para mim. Na esperança de que elas ajudem alguém a não se sentir tão só com este problema, na esperança de que elas também me ajudem a lidar com ele… Embora não creia que estes textos tenham esse poder.
Ainda na segunda-feira ao jantar, dei conta de um pequeno pormenor que passaria decerto despercebido a alguém que não conhecesse bem o meu filho e o seu quadro clínico de Síndrome de Asperger. Seria quando muito uma bizarria, nunca uma anomalia. Depois de uma refeição de peixe grelhado, da parte do meu filho diria que significativamente pouco aproveitado, ou seja, desperdiçando muito «peixe comestível» - este comentário é ainda o resquício da educação moldada pelos valores do Estado Novo, em que sempre me recomendaram que não desperdiçasse a comida, para além do «politicamente correcto» em ocasiões sociais - chegámos à fruta: abacaxi em fatias. As ditas fatias, cortadas sem grande apuro, ainda apresentavam aqui e ali ligeiros resquícios de casca. Eu diria que desses resquícios, alguém mais escrupuloso retiraria talvez 20%, os restantes seriam ingeridos sem qualquer preocupação. Pois, o meu filho retirou literalmente tudo. E isso trouxe-me à memória algo que eu sempre vi mas nunca compreendi: as inúmeras refeições de arroz de tomate onde as insignificantes farripas de tomate eram cirurgicamente retiradas e arrumadas à borda do prato, ainda que a refeição demorasse três vezes mais tempo, houvesse o que houvesse para fazer… Essa característica, diria «niquenta», em certos aspectos, e apenas em certos aspectos, é mais uma peculiaridade desta «nossa» gente, ou pelo menos de parte dela…
Ainda na segunda-feira ao jantar, dei conta de um pequeno pormenor que passaria decerto despercebido a alguém que não conhecesse bem o meu filho e o seu quadro clínico de Síndrome de Asperger. Seria quando muito uma bizarria, nunca uma anomalia. Depois de uma refeição de peixe grelhado, da parte do meu filho diria que significativamente pouco aproveitado, ou seja, desperdiçando muito «peixe comestível» - este comentário é ainda o resquício da educação moldada pelos valores do Estado Novo, em que sempre me recomendaram que não desperdiçasse a comida, para além do «politicamente correcto» em ocasiões sociais - chegámos à fruta: abacaxi em fatias. As ditas fatias, cortadas sem grande apuro, ainda apresentavam aqui e ali ligeiros resquícios de casca. Eu diria que desses resquícios, alguém mais escrupuloso retiraria talvez 20%, os restantes seriam ingeridos sem qualquer preocupação. Pois, o meu filho retirou literalmente tudo. E isso trouxe-me à memória algo que eu sempre vi mas nunca compreendi: as inúmeras refeições de arroz de tomate onde as insignificantes farripas de tomate eram cirurgicamente retiradas e arrumadas à borda do prato, ainda que a refeição demorasse três vezes mais tempo, houvesse o que houvesse para fazer… Essa característica, diria «niquenta», em certos aspectos, e apenas em certos aspectos, é mais uma peculiaridade desta «nossa» gente, ou pelo menos de parte dela…
4 Comentário(s):
E as horas infinitas a olhar para os cromos da colecção de cães! E tudo o que fazem com uma infinita paciência...recortar na perfeição, colar,e outra vez olhar... A minha experiência é muito limitada. É um Asperger com 8 anos, "sinalizado" na escola como o "parvinho que bate em todos" e passa o tempo com a "cabeça na lua", família desestruturada, abandono emocional, etc... Não há, pelos vistos, forma deste sistema educativo o entender ou sequer de o encaminhar até ao psicólogo. É um Asperger muito recentemente identificado. Tenho medo de ninguém fazer nada. Não é meu aluno, mas estou muitas vezes com ele e já pesquisei de tudo, já arranjei software(pouco e de freeware)e tento trabalhar com ele de forma a criar-lhe hábitos de trabalho, de higiene e de interacção social positiva. Mas é difícil estar sozinha.Parabéns pelo seu blog
Claro. Tudo que refere são outras formas de se «ser» asperger. Não me quero «armar» em médico ou terapeuta. Sou apenas pai e não o melhor, muito longe disso. Mas parece-me que nas definições de «parvinho» e de «cabeça no ar» está o asperger, mas no «bater em todos» está o asperger a «pedir ajuda». Presumo que seja professora. E, como se percebe, é uma professora atenta, preocupada e empenhada, o que, como sabe, não é infelizmente muito comum. Não sou, naturalmente, a melhor pessoa para a ajudar ou sequer orientar, mas posso sugerir-lhe que, atendendo a que os CAE (Centros de Área Educativa) já não existem, contacte a Direcção Regional de Educação da sua área. Eles podem e devem dar o devido acompanhamento a esse caso (em termos de SPO e de Ensino Especial), isto no que diz respeito ao enquadramento na escola. Fora dela, o CADIN tem um Serviço de Apoio à Família, que agora se chama Provedoria da Família, que também pode ajudar e ajuda mesmo quem não tem possibilidades económicas. Talvez a APSA também possa dar «uma mão» no que respeita à orientação. Quanto a bibliografia, tenho algumas coisas que talvez lhe possam interessar (pode escrever para o endereço from.planet-asperger@sapo.pt). Agradeço-lhe os parabéns que me endossou, mas eles são sobretudo para si, muito mais do que para mim. Eu tenho essa situação, mas você «adoptou» uma situação que não é sua, nem familiarmente, nem sequer por obrigação profissional, já que a criança de que fala nem seu aluno é. E isso vale tudo. Ainda bem que existe para essa criança e ainda bem que ainda existem professores assim. Um abraço.
E o suplício que é para nós, pais, descascar batatas, fruta, ou o que quer que seja, sob a apertada vigilância do nosso João... Não pode ficar um pontinho que seja de casca! Tal como a obcessão por limpar as folhas velhas das plantas lá de casa... E a meticulosidade em olhar para tudo (inclusive, por vezes, o chão) de olhos colados, para ver se está limpo... Enfim, particularidades com que já estamos habituados a viver e aprendemos a aceitar. Sobretudo, já fizemos grandes progressos na questão de relaxar perante terceiros, não estando sempre a tentar justificar estas particularidades. Esta parte tem sido complicada, sobretudo porque é muito fácil apontar a diferença ou aquilo que é esquisito nos outros. E desta vez, a diferença está do lado de cá. Com isto, aprendemos também a ser mais tolerantes com os outros. Estou infinitamente agradecida ao meu filho pelo o facto de, com a sua maneira de ser, me ter ajudado a ser uma pessoa melhor.
Felicito-a, sfelix, por esse seu percurso, coisa que eu sempre tive e continuo a ter a maior dificuldade em fazer...
A sua frase final é verdadeiramente exemplar sobre o modo como incorporou o problema do seu filho na sua vida. Parabéns.
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