«Não estamos sós». Um espaço de reflexão sobre a diferença.
terça-feira, fevereiro 28, 2006
Einstein, Mr. Bean & Professor Tornesol
O tal cartoon do asperger ou «pseudo-asperger» Albert Einstein que vem esta semana na revista Visão, e de que falámos no post anterior, fez-me lembrar - pela combinação das diferenças - a imagem que ouvi da boca do professor Nuno Lobo Antunes, a de que o espectro dos asperger vai desde o Mr. Bean até ao Professor Tornesol… Ela diz tudo, aliás como esta imagem… Provavelmente, nenhum é apenas o Mr. Bean, nem apenas o Professor Tornesol…
Vale o que vale. Mas li esta semana na Visão (n.º 677), um artigo de Andrew Weil, professor de Medicina Clínica na Universidade do Arizona, que afirma que se utiliza o óleo de peixe, em doses de 1 até 10 gramas, para tratar «situações diversas como a depressão, desordem do défice de atenção, desordem bipolar e até autismo». Lá se lê também que os ácidos gordos – Ómega-3 – existem sobretudo em peixes como o salmão, a sardinha, a cavala, o arenque, a sarda e o bacalhau. O artigo é ilustrado com um cartoon de Einstein – quem poderia ser; o tal «asperger» ou «pseudo-asperger» de que já aqui falámos – segurando um garfo com uma sardinha. O artigo integra um extenso dossier da Visão, originalmente publicado na Time, dedicado ao cérebro.
Vou-me dando conta constantemente dos pequenos nada, dos pequenos tudo, que vão povoando o quotidiano de quem vive com alguém com Síndrome de Asperger, nas suas peculiaridades comportamentais, estranhas para nós. Muitas delas sempre as vi, anotei mentalmente, mas verdadeiramente nunca as interiorizei. Elas eram apenas dados sem ligação entre si que eu amontoava, sem nelas ver qualquer conexão. Porém - desde há dois anos – vou-as juntando num puzzle coerente. E desde há um mês «atiro-as» para aqui, não as calando para mim. Na esperança de que elas ajudem alguém a não se sentir tão só com este problema, na esperança de que elas também me ajudem a lidar com ele… Embora não creia que estes textos tenham esse poder. Ainda na segunda-feira ao jantar, dei conta de um pequeno pormenor que passaria decerto despercebido a alguém que não conhecesse bem o meu filho e o seu quadro clínico de Síndrome de Asperger. Seria quando muito uma bizarria, nunca uma anomalia. Depois de uma refeição de peixe grelhado, da parte do meu filho diria que significativamente pouco aproveitado, ou seja, desperdiçando muito «peixe comestível» - este comentário é ainda o resquício da educação moldada pelos valores do Estado Novo, em que sempre me recomendaram que não desperdiçasse a comida, para além do «politicamente correcto» em ocasiões sociais - chegámos à fruta: abacaxi em fatias. As ditas fatias, cortadas sem grande apuro, ainda apresentavam aqui e ali ligeiros resquícios de casca. Eu diria que desses resquícios, alguém mais escrupuloso retiraria talvez 20%, os restantes seriam ingeridos sem qualquer preocupação. Pois, o meu filho retirou literalmente tudo. E isso trouxe-me à memória algo que eu sempre vi mas nunca compreendi: as inúmeras refeições de arroz de tomate onde as insignificantes farripas de tomate eram cirurgicamente retiradas e arrumadas à borda do prato, ainda que a refeição demorasse três vezes mais tempo, houvesse o que houvesse para fazer… Essa característica, diria «niquenta», em certos aspectos, e apenas em certos aspectos, é mais uma peculiaridade desta «nossa» gente, ou pelo menos de parte dela…
Congresso Internacional sobre Síndrome de Asperger
Soubemos ontem, na Assembleia Geral da APSA, que elegeu os novos corpos sociais para 2006 e 2007, que a sua Delegação do Norte – encontra-se em constituição também a Delegação do Nordeste e Alto Douro – está a organizar um Congresso Internacional sobre Asperger, que irá decorrer, previsivelmente no final deste ano, na cidade do Porto. Mesmo sem instalações, uma delegação recente – nasceu em Abril do ano passado – consegue mobilizar-se, organizar-se e abalançar-se a uma organização com a envergadura de um Congresso Internacional. O Planeta Asperger sublinha e saúda esta notável dinâmica patenteada pela Delegação do Norte da APSA…
No workshopde ontem, Será Asperger… O que fazer?, Carla Almeida e Inês Leitão sublinharam a necessidade de efectuar um diagnóstico o mais precocemente possível, de modo a traçar uma estratégia de intervenção que permita um desenvolvimento adequado da criança com Síndrome de Asperger (SA). E abordaram a grande dificuldade em efectuar um diagnóstico seguro de SA antes dos 3 anos, ou seja, antes da entrada para – digamos assim – o ensino pré-escolar. Isso obrigou-me a recuar até aos três primeiros anos da vida do meu filho. E a «vasculhar» nas minhas memórias sobre se havia algo, nessa idade, que eu pudesse identificar - estando naturalmente alertado para tal - como sintoma do quadro clínico que depois se viria a configurar. E a resposta é afirmativa. Em dois aspectos: no «olhar» e no «contacto físico». No olhar, porque – mesmo nesses primeiros tempos – sempre achei o olhar do meu filho bebé invulgarmente atento e com uma fixidez diferente. Aquele olhar era diferente dos olhares dos outros bebés. Tenho-o bem presente e vivo na memória. Sentia-lhe a diferença. E vislumbro-o nalgumas fotografias da época. No contacto físico, porque era um contacto desajustado, onde não havia – digamos assim – «diálogo corporal». Por norma, os bebés anicham-se, aconchegam-se no colo dos adultos, moldam-se às suas formas, adaptam-se. Ora isso nunca aconteceu com o meu filho. Houve sempre uma forma de estar no colo hirta, rígida, diferente. Lembro-me de numa ocasião lhe pegar ao colo enquanto dormia. Tendo sido de imediato repreendido pela minha mulher que me disse qualquer coisa do tipo: «Parece que só te apetece pegar-lhe ao colo enquanto está dormir!». O que era, porventura, verdade! E percebo agora o porquê. É que só nesse estado me era «confortável» tê-lo no colo, só nesse estado estabelecíamos um diálogo também através do corpo…
Timidamente, começa-se a falar da Síndrome de Asperger (SA). E a opinião pública começa a saber que existe uma patologia com esse nome. Até à blogosfera genérica, a SA já chegou, como se vê no Bloguítica de Paulo Gorjão (post 267, de 17-02-2006).
Workshop assinala abertura do Ano Internacional do Asperger
Teve lugar esta manhã, nas instalações do CADIN - Centro de Apoio ao Desenvolvimento Infantil, na Estrada da Malveira, a abertura oficial, em Portugal, do Ano Internacional do Asperger. A data escolhida deve-se ao facto de se comemorar hoje 100 anos sobre o nascimento do pediatra vienense Hans Asperger, que identificou a síndrome que depois veio a receber o seu nome. A abertura do Ano Internacional do Asperger é uma iniciativa da APSA – Associação Portuguesa de Síndrome de Asperger, com o apoio do CADIN. O evento foi assinalado com a realização de um wokshop subordinado ao tema: Será Asperger… O que fazer?, dinamizado por Carla Almeida e Inês Leitão, a primeira do Instituto Piaget e a segunda do CADIN, que traçaram uma panorâmica geral, com propostas práticas de intervenção, sobre a Síndrome de Asperger, desde uma fase muito precoce, enquanto não é possível um diagnóstico seguro, até à entrada para o infantário e ao final do 1.º ciclo do ensino básico. Foram duas intervenções muito claras, sistematizadas e estruturadas, dirigidas essencialmente a pais e educadores. Este workshop, que contou com uma assistência de cerca de 50 pessoas, será o primeiro de três workshops que pretendem percorrer toda a vida de uma asperger: infância - o de hoje - adolescência - o próximo - e idade adulta, o último.
Vai estrear, a 23 de Maio próximo, em Portugal,o filme Loucos de Amor, cujo título original é Mozart & the Whale, uma comédia romântica dramática – é essa a classificação «oficial»?! – realizada por Peter Naesse, com base numa história de Ronald Bass – autor de Rain Man e O Casamento do meu melhor amigo. Donald Morton (Josh Hartnett) é um jovem taxista que sofre de Síndrome de Asperger e que tem uma fixação por números e padrões, o que o leva, por exemplo, a definir com exactidão a sua rota e a dos outros táxis. Paralelamente, Donald é responsável por um grupo que reúne pessoas portadoras de distúrbios semelhantes ao seu, onde conhece Isabelle Sorenson (Radha Mitchell), criando-se uma certa empatia entre ambos, ao descobrirem muitos aspectos comuns, tais como entender boa parte do que os outros dizem de forma literal (os flashbacks à infância ilustram essa dificuldade). Ambos representam dois tipos diferentes de Asperger – o que é interessante – Donald é introspectivo e nunca sabe como agir e o que dizer em contexto social, suprindo isso com uma dedicação obsessiva aos seus pássaros. Ao contrário, Isabelle verbaliza tudo o que pensa, descrevendo-se mesmo como arrogante, temperamental e sendo muitas vezes vista como excêntrica. Temo que o filme possa ser mais um produto da mainstream que domina o cinema americano. Designações tais como «génio da matemática», para definir Donald Morton, causam-me, à partida, reservas. A ver com interesse mas também com cautela, para não pensarmos que temos pequenos génios excêntricos em casa… Um «génio da matemática» não precisa de um rótulo de Síndrome de Asperger... Tal como em quase tudo, a realidade é sempre pior do que a ficção…
Desde que há dois anos o meu filho foi diagnosticado como tendo Síndrome de Asperger que estou mais atento a certos detalhes e peculiaridades do seu comportamento. Sinto uma grande necessidade de compreender aquele distúrbio talvez para melhor poder lidar com ele. Embora ache que nunca vou saber lidar com ele. Talvez seja para me tentar libertar de uma certa «culpa» genética que racionalmente não sinto mas que emocionalmente não posso deixar de sentir… Talvez seja para tentar também (não) encontrar em mim traços e características que ele tem amplificadas, libertando-me assim da tal «culpa» de que falava… Talvez seja um exercício catártico para a situação… Sejam quais forem as razões, o certo é que estou mais atento. Intriga-me, desde há seguramente mais de um ano, um certo fascínio do meu filho pelo Mário Crespo, omnipresente jornalista da SIC Notícias. E dou com ele a ver a SIC Notícias, a pedir para mudar o televisor para a SIC Notícias e para o Jornal das 9 ou até a lembrar-me, horas antes, que no horário y lá aparecerá o Mário Crespo. E isso porquê? Não é seguramente pelo tema x ou y do programa w ou z. Mas sim pela figura daquele jornalista e pela enormíssima gama de maneirismos faciais, gestuais e vocais que ele apresenta. É talvez das figuras mediáticas do presente aquela que mais inflexões, tonalidades e requebros de voz e de timbre, combinados com uma gestualidade contida mas expressiva, apresenta. Duvido que o meu filho saiba interpretar toda aquela sinfonia de sinais não-verbais, mas detecta-os, sinaliza-os e aprecia-os. O que é curiosíssimo nesta pequena fixação é o fascínio que ele mostra por aspectos e características que ele manifestamente não tem e que depois tenta reproduzir de forma tosca e atabalhoada. Talvez seja exactamente por ele não dispor daquela gama de recursos que tão fascinado fica por eles… Resta dizer, já agora, que, apesar dos maneirismos do Mário Crespo, o considero um jornalista competentíssimo, culto e informado e uma imagem de marca do bom jornalismo que se faz na SIC Notícias. Para que conste...
Depois de uma experiência meteórica frustrada – durou 3 dias – numa instituição essencialmente vocacionada para a deficiência física, o meu filho entrou numa estrutura vocacionada para o apoio à deficiência mental… Não é o ideal, longe disso… mas é melhor do que «estar em casa»… A única alternativa viável para uma família nuclear muito restrita e sem apoios… Assim é a vida de uma família com um caso de Síndrome de Asperger numa grande cidade… Há 30 anos atrás, tal não seria preciso… As cidades reproduziam, nos seus bairros, as lógicas das aldeias… Havia relações de vizinhança e de proximidade… Havia sempre alguém em casa… Ou senão, um vizinho dava «uma mãozinha», um familiar vivia perto… E o meu filho estaria naturalmente inserido na sociedade… Numa qualquer função rotineira, mecânica, indiferenciada, mas integrado… Recordo os marçanos das velhas mercearias de bairro, os ajudantes de armazém, os ajudantes de tudo e mais alguma coisa… As famílias eram maiores e estavam geograficamente mais próximas… Havia sempre alguém que tinha um pequeno negócio… A integração fazia-se naturalmente… Assim, está – digamos assim – semi-institucionalizado… Veremos o que o futuro nos reserva! É esta a tal «sociedade inclusiva», tão propalada… Quando se fala nela, é porque ela não existe. Há 30 anos não existia a expressão «sociedade inclusiva». Pudera, para quê? Pelo menos nestes casos, ela era de facto inclusiva…